Por: Cleiton Gomes
No pensamento bíblico-judaico, Ha-Satán (“Satanás”) não é originalmente visto como uma entidade rebelde e autônoma que se opõe ao Todo-Poderoso, mas sim como um agente dentro da própria ordem estabelecida pelo Criador. O termo Ha-Satán (הַשָּׂטָן) não é um nome próprio, mas um título que significa "O Acusador" ou "O Opositor". Em algumas tradições posteriores, especialmente em escritos apócrifos e literaturas judaicas como o Livro de Enoque, seu nome próprio seria Samael (associado ao anjo da morte e da acusação). Seu papel inicial, conforme observado em textos como o livro de Jó, era o de um acusador, uma espécie de promotor celestial que testava a retidão e a fidelidade dos seres humanos. No entanto, ao longo do tempo, ele parece ter ultrapassado os limites dessa função, movido por sentimentos de ciúmes e descontentamento com o papel que a humanidade recebeu na criação.
A criação do homem marcou um momento singular na estrutura do cosmos, pois os seres humanos foram formados à imagem e semelhança do Criador e receberam uma posição privilegiada sobre a Terra. Essa distinção pode ter sido a faísca inicial para um descontentamento crescente dentro da hierarquia celestial. Se os anjos eram seres poderosos e antigos, criados antes do homem, a ideia de que uma criatura feita do pó da terra pudesse ser agraciada com tamanha importância talvez tenha sido inaceitável para alguns, incluindo Ha-Satán. Isso explicaria seu papel ativo na queda da humanidade, pois a tentação de Eva não parece ter sido apenas um ato de maldade gratuita, mas um movimento calculado para provar que o ser humano era indigno da posição que lhe foi concedida.
Diferente da concepção posterior, em que Satanás é representado como um ser completamente independente e opositor do Criador, nos escritos judaicos mais antigos ele não se afasta totalmente da ordem divina. No livro de Jó, por exemplo, Ha-Satán ainda comparece perante o Criador e age dentro da jurisdição que lhe é permitida. Ele não tem liberdade para agir sem permissão, mas desempenha um papel de provador, questionando a justiça e a retidão dos homens (Jó 1:6-12 e Jó 2:1-7) . Sua dúvida sobre a lealdade de Jó reforça a ideia de que ele não acredita na pureza da devoção humana sem um estímulo externo.
Entretanto, em algum momento, essa função parece ter se transformado. Se Ha-Satán começou como um opositor dentro da estrutura legal celestial, é possível que seu questionamento sobre a humanidade tenha se intensificado a tal ponto que ele mesmo tenha se tornado um antagonista absoluto. A ideia de que a humanidade era indigna pode ter levado ao desejo de afastá-la completamente do Criador, passando de um simples acusador para um sedutor e enganador. Sua atuação ao longo da história bíblica reflete essa transição, pois ele não apenas desafia a retidão humana, mas age diretamente para afastá-la da aliança divina.
O episódio do Éden pode ser compreendido sob essa ótica. Ao instigar Eva a desobedecer ao Criador, Ha-Satán pode ter pretendido mais do que apenas provocar a queda; ele poderia estar tentando provar um ponto, demonstrando que os humanos eram fáceis de corromper e que não mereciam a posição que lhes foi dada. Seu papel ali não é meramente o de um inimigo, mas de um desafiante da ordem estabelecida. A estratégia utilizada, a distorção das palavras divinas, indica um ser que não está apenas testando os limites do homem, mas questionando diretamente a autoridade e o julgamento do Criador.
Se Ha-Satán se tornou um opositor completo, isso pode ter sido um processo gradual, motivado por uma combinação de ciúmes, orgulho e rejeição ao plano divino. Se sua posição original era a de um promotor celestial que testava os humanos, em algum momento ele passou a agir como aquele que busca sua destruição. A diferença fundamental entre suas funções anteriores e posteriores é que, enquanto antes ele questionava a fidelidade dos homens dentro dos limites estabelecidos pelo Criador, depois ele começou a operar de forma ativa para afastá-los da verdade.
Outro ponto relevante é sua relação com o Messias. Se Ha-Satán viu a criação da humanidade como um erro, é provável que tenha considerado a redenção por meio de Yeshua um ultraje ainda maior. O fato de que o Criador escolheu intervir diretamente na história humana, pode ter sido inaceitável para ele. Esse aspecto pode ajudar a explicar por que ele tenta desviar Yeshua no deserto, oferecendo-lhe os reinos do mundo (Lucas 4:1-7; Mateus 4:1-11). Se sua revolta estava enraizada na rejeição da importância dada à humanidade, então o plano divino de trazer a redenção através de um homem seria a confirmação definitiva de sua derrota. Ao oferecer a Yeshua os reinos do mundo, ele demonstra um desejo de usurpação, tentando fazer com que o Messias se submetesse a ele.
Além disso, a oposição de Ha-Satán à humanidade se intensifica à medida que o plano de redenção avança. Se ele antes se limitava a questionar a retidão dos homens, agora ele busca cegá-los para a verdade e mantê-los afastados do Criador (2 Coríntios 4:4). As Escrituras mostram que ele é o enganador das nações, aquele que semeia a confusão e distorce a verdade para impedir que os homens alcancem a redenção.
Essa atuação é perceptível não apenas nos eventos da tentação no deserto, mas também ao longo da missão de Yeshua. Ao longo dos relatos bíblicos, vemos que Ha-Satán influencia líderes religiosos e políticos, fomentando a perseguição contra Yeshua e seus discípulos. Sua estratégia não é apenas direta, mas também sutil, utilizando a corrupção, a mentira e a manipulação para minar o caminho da verdade.
A visão de Apocalipse reforça essa ideia ao descrever Ha-Satán como o adversário que será finalmente derrotado. A guerra celestial que culmina na sua expulsão definitiva e no estabelecimento do reino messiânico marca o fim de sua influência sobre a humanidade (Apocalipse 12:7-9). Esse destino final demonstra que, apesar de toda sua oposição, o plano do Criador prevalece, e a restauração da criação se concretiza.
Em Apocalipse 20:1-15, um dos episódios mais profundos da Escritura revela a prisão de Ha-Satán por mil anos e sua subsequente libertação, seguida de sua derrota final. Este evento ilustra de maneira dramática a supremacia do plano divino, que, mesmo diante da oposição persistente, não pode ser frustrado. Embora Ha-Satán tenha nutrido inveja da humanidade e tenha feito esforços imensos para obscurecer a redenção oferecida por Yeshua, suas tentativas foram inúteis. O ETERNO, em Sua sabedoria e soberania, mostrou que nenhuma oposição pode prevalecer contra Seus propósitos.
O aprisionamento de Ha-Satán durante mil anos é uma interrupção temporária de sua influência sobre o mundo. Ao longo desse período de aprisionamento, o reinado messiânico será estabelecido, permitindo que a humanidade experimente paz e justiça, livres das tentações e corrupções que ele impôs por tanto tempo. A prisão ocorre no "abismo", que representa a contenção do mal, impedindo que ele continue a semear engano e divisão. Esse intervalo é um período de restauração, preparando a humanidade para a consumação do plano divino na Terra.
Após os mil anos, ele será solto por um breve momento. A razão para essa liberação temporária não é uma chance para o mal prevalecer, mas um teste final para a humanidade. Aqueles que viveram sob o domínio do Messias terão experimentado a paz, e a brecha criada pela soltura de Ha-Satán permitirá uma distinção clara entre os verdadeiros adoradores do ETERNO e aqueles que ainda podem ser seduzidos pelo engano. Esse teste não é para questionar o plano divino, mas para reforçar a certeza de que a humanidade, mesmo após uma longa experiência de justiça e verdade, tem a escolha de seguir a luz ou sucumbir à escuridão.
A última tentativa de incitar uma rebelião contra o Reino de Yeshua será rapidamente destruída. Ele reunirá as nações para uma última batalha, mas sua derrota será decisiva. Ha-Satán será lançado no lago de fogo, simbolizando a erradicação definitiva de todo o mal. Essa derrota não é apenas o fim de sua atuação, mas também um marco na restauração plena da criação. O mal será banido para sempre, e a humanidade será libertada de sua influência, podendo, enfim, viver em um novo céu e nova terra, onde a corrupção, o sofrimento e a morte não terão mais lugar.
A prisão e derrota final de Ha-Satán em Apocalipse 20 demonstram que, por mais que ele tenha tentado frustrar o plano divino, nada de suas ações pôde impedir a realização do propósito do ETERNO. Sua tentativa de enganar a humanidade, semeando divisão, desconfiança e ceticismo, foi em vão. O ETERNO, em Sua soberania, não apenas permite que o mal seja temporariamente contido, mas também assegura que a vitória final sobre ele será irrevogável. O evento descreve não apenas o fim da oposição ao Criador, mas também a consumação de Sua vontade, onde paz e justiça prevalecerão eternamente.
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