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Os três que testificam em 1ª João 5:7-8

Por Cleiton Gomes

Ao nos aproximarmos da primeira epístola de João, é importante considerar o cenário em que ela foi produzida. Diferente das cartas de Paulo, endereçadas a comunidades específicas, este escrito tem caráter mais amplo e provavelmente circulou entre diferentes congregações ligadas à tradição joanina, localizadas em Éfeso e na região da Ásia Menor. Essas comunidades viviam divisões internas, marcadas pela influência de falsos mestres, pela divisão provocada por alguns que abandonaram a fé e pelas incertezas quanto à verdadeira identidade do Messias.

Nesse contexto, o apóstolo escreve com o propósito de fortalecer a fé dos discípulos e oferecer critérios claros para distinguir a verdade do engano. Entre os principais desafios enfrentados estava o surgimento de correntes que negavam que o Messias tivesse vindo em carne, reduzindo-o a uma manifestação meramente espiritual. Havia também a necessidade de reafirmar que a obediência aos mandamentos da Torá não era opcional, mas parte essencial da vida em comunhão com o ETERNO. Assim, a carta se apresenta como uma convocação à fidelidade: permanecer naquilo que foi recebido desde o princípio, andar em amor fraterno e não se deixar seduzir por concepções distorcidas da fé.

Ao longo da epístola, João insiste em três eixos fundamentais que moldam a vida da comunidade: a verdade, a obediência e o amor. Esses elementos aparecem repetidamente como marcas distintivas dos que permanecem em Yeshua. A verdade se refere ao reconhecimento de que o Messias veio em carne e à fidelidade ao testemunho apostólico. A obediência aponta para a prática dos mandamentos do ETERNO, não como um fardo, mas como expressão natural da fé. E o amor, que deve ser exercido de forma concreta entre os irmãos, é a evidência mais visível da comunhão com o Criador.

Essa tríade responde diretamente às crises enfrentadas pelas comunidades. Aqueles que haviam se afastado negavam a encarnação do Messias, relativizavam a necessidade de guardar os mandamentos e não demonstravam amor verdadeiro pelo próximo. Por isso, João apresenta critérios objetivos para discernir quem realmente pertence a Yeshua. Ele declara: “Aquele que diz estar nele deve andar como ele andou” (1 João 2:6). Do mesmo modo, afirma que “quem diz estar na luz e odeia a seu irmão, até agora está em trevas” (1 João 2:9). A carta, portanto, não é apenas uma defesa contra falsas doutrinas, mas uma convocação à coerência de vida.

É nesse cenário que surge um dos grandes desafios enfrentados pelas comunidades joaninas: a influência dos chamados docetas. Esses grupos, vinculados a correntes gnósticas, negavam a humanidade real do Messias, afirmando que ele não havia nascido de mulher, nem experimentado fome, dor ou morte verdadeira. Para eles, a matéria era impura e incompatível com a pureza divina; por isso, concebiam o nascimento, o sofrimento e a morte de Yeshua apenas como aparências, uma representação espiritual destinada a transmitir verdades celestes. A epístola se levanta precisamente contra esse tipo de pensamento. João declara que todo espírito que nega a vinda do Messias em carne não procede do ETERNO, mas é expressão do espírito do anticristo (1 João 4:3). Não por acaso, ele abre sua carta enfatizando que o Messias foi visto, ouvido e tocado (1 João 1:1), reforçando assim sua realidade histórica e concreta diante das distorções gnósticas.

É nesse mesmo contexto que João introduz a tríplice testemunha, em 1ª João 5:7-8. A primeira referência feita por João é à água. Dentro da tradição judaica, a água está associada à purificação ritual e à própria Torá, frequentemente descrita como fonte de águas vivas (Isaías 55:1; Jeremias 2:13; Ezequiel 36:25). No caso do Messias, a água aponta de modo especial para o seu batismo (Mateus 3:16-17). João, portanto, relembra que Yeshua não foi uma entidade espiritual desencarnada, mas alguém que entrou nas águas do Jordão, submetendo-se ao rito de purificação e inaugurando seu ministério de forma concreta e visível.


O segundo testemunho é o sangue, diretamente associado à vida, conforme estabelece Levítico 17:11. O sangue evoca a entrega sacrificial, já prefigurada no cordeiro pascal de Êxodo 12:7 e anunciada nas profecias de Isaías 53:12. Em Yeshua, esse elemento encontra seu cumprimento pleno: ele derrama o próprio sangue, não em aparência, mas em realidade, selando a nova aliança e oferecendo expiação eficaz. Contra os docetas, João destaca que não se trata de uma morte ilusória, mas de um ato histórico e redentor que marcou a consumação de sua missão. O sangue, nesse sentido, é o testemunho mais contundente de que o Messias viveu em carne, sofreu e morreu de fato.

Por fim, João apresenta o testemunho do Espírito. Desde a criação, ele se revela como a presença do ETERNO que dá vida ao ser humano (Gênesis 2:7) e como a força que renova os corações (Ezequiel 36:26-27). Foi por essa ação divina que os profetas falaram, e Yeshua assegurou que essa verdade permaneceria nos discípulos, habitando neles e confirmando o que já havia sido revelado desde o princípio (João 16:13). Assim, o testemunho continua ativo na vida dos que creem, garantindo a realidade da obra redentora e fortalecendo-os para caminhar em obediência.

Após compreender o sentido dos três testemunhos apresentados por João, é necessário abordar uma questão textual que se tornou central na história da interpretação desse trecho. Algumas versões da Escritura, especialmente em traduções mais antigas, trazem a formulação: “Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo, e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, a água e o sangue, e estes três concordam num.” No entanto, essa redação não se encontra nos manuscritos mais antigos em grego e aramaico.


Esse acréscimo ficou conhecido na crítica textual como glosa joanina. Trata-se de uma interpolação que aparece apenas em manuscritos latinos medievais, sobretudo a partir do século IV e V, e que acabou sendo incorporada em algumas traduções modernas devido à influência da Vulgata Latina. O objetivo era reforçar a doutrina da Trindade, especialmente em um período em que a Igreja Ocidental estava profundamente envolvida em debates com o Arianismo.

Assim, a adição não nasceu do testemunho apostólico original, mas da necessidade de legitimar, por meio do texto bíblico, uma formulação doutrinária distorcida que se tornava cada vez mais central na Igreja. Por isso, os estudiosos reconhecem que a glosa joanina deve ser lida como um reflexo das disputas teológicas dos primeiros séculos, e não como parte da mensagem de João às suas comunidades.


Esse processo explica por que algumas traduções posteriores, especialmente em línguas modernas que tiveram como base a Vulgata, conservaram a passagem. Por muitos séculos, os leitores receberam a versão ampliada como se fosse o texto bíblico autêntico.  Somente com o desenvolvimento da crítica textual, a partir do século XIX, e com a descoberta de manuscritos mais antigos, tornou-se evidente que a redação genuína de 1 João 5:7-8 apresentava apenas três testemunhos: o Espírito, a água e o sangue. Assim, a responsabilidade dos estudiosos e tradutores modernos é devolver o texto ao seu estado mais próximo do original, respeitando o testemunho preservado pelas tradições mais antigas. Essa constatação, no entanto, não diminui o valor teológico da carta. Pelo contrário, permite perceber com maior clareza a intenção do apóstolo. João não estava preocupado em oferecer uma fórmula dogmática sobre a natureza do ETERNO, mas em reafirmar a realidade concreta da obra do Messias contra as distorções que surgiam em seu tempo. Ao destacar a água, o sangue e o Espírito como testemunhos concordes, ele mostra que a fé não é sustentada por abstrações, mas por eventos históricos e por uma presença divina que continua atuando na comunidade dos crentes.


Em suma, a passagem de 1 João 5:7-8 deve ser lida à luz de todo o propósito da epístola. Ao compreender o texto dentro desse horizonte, fica evidente que a mensagem de João não depende de acréscimos posteriores, mas se mantém poderosa e atual: a salvação não é um conceito abstrato, mas uma obra realizada na história e confirmada no coração daqueles que permanecem fiéis à verdade. 

Assim, a epístola não apenas responde às controvérsias de sua época, mas continua sendo um convite para que cada discípulo permaneça na verdade, no amor e na obediência, guardando os mandamentos do ETERNO e reconhecendo em Yeshua a expressão viva da Torá.



Seja iluminado!!!









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