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Santa Ceia ou Pêssach?

Por Cleiton Gomes

A penúltima refeição de Yeshua com seus discípulos adquire relevância especial quando examinada a partir de seu contexto histórico e judaico, especialmente no que diz respeito à identificação dessa refeição dentro ou fora do Pessach [1]. Ao longo dos séculos, esse episódio foi frequentemente interpretado fora do ambiente religioso, cultural e litúrgico do século I, o que torna necessária uma análise criteriosa tanto da natureza da celebração realizada quanto do sentido atribuído às palavras de Yeshua no próprio texto bíblico.

Os evangelhos registram que os discípulos se aproximaram de Yeshua para perguntar onde deveriam preparar a refeição. O texto não sugere a organização de uma cerimônia recém-criada, mas afirma de forma explícita que se tratava da preparação do Pessach. A pergunta formulada é direta: “Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Pessach?” (Mateus 26:17; Marcos 14:12; Lucas 22:7). Essa formulação indica que tanto Yeshua quanto seus discípulos compreendiam aquela refeição dentro do calendário e da prática litúrgica judaica já estabelecida, e não como um rito distinto a ser inaugurado.

Conforme instituído na Torá, o Pessach não funcionava apenas como lembrança histórica da saída do Egito, mas como um memorial anual dotado de significado pedagógico, identitário e teológico para Israel, celebrado em data fixa e com elementos ritualizados bem definidos (Êxodo 12; Levítico 23:4-8; Números 9:5-14).

É nesse cenário que Yeshua participa do Pessach como judeu observante (João 2:13) e como mestre inserido na tradição de seu povo. Os textos não apresentam qualquer indício de ruptura com a festa ou de rejeição de sua validade. Ao contrário, o relato enfatiza o desejo de Yeshua de celebrar o seder de Pessach [2] com seus discípulos antes de seu sofrimento (Lucas 22:15), reforçando a continuidade entre sua prática religiosa e o judaísmo de seu tempo.  

Os elementos destacados durante a refeição, especialmente o pão sem fermento e o cálice, pertencem integralmente ao contexto pascal. O pão ázimo remete à pressa da saída do Egito (Êxodo 12:39), estando explicitamente proibido o consumo de qualquer alimento fermentado durante o período da festa (Êxodo 12:15; 13:6-7; Levítico 23:6; Deuteronômio 16:3). Na celebração pascal, o consumo coletivo dos pães ázimos fazia parte da refeição memorial prescrita (Êxodo 12:8). A prática de partir o pão e distribuí-lo entre os participantes, portanto, não constitui um gesto estranho ao Pessach, mas se insere na dinâmica própria da refeição ritual, na qual os elementos são compartilhados como parte do memorial da libertação.

Dentro desse universo simbólico, alguns gestos da refeição pascal passaram a ser objeto de leituras interpretativas mais amplas ao longo da tradição judaica. Em leituras tradicionais posteriores, a divisão do pão ao meio foi associada ao episódio da Akedá, o sacrifício de Isaque, filho de Abraão, no qual a vida é colocada em oferta, mas preservada pela intervenção divina (Gênesis 22). Assim, o partir do pão não constitui um gesto arbitrário, mas integra uma linguagem ritual já conhecida, na qual morte, entrega e preservação da vida são articuladas de forma simbólica.

De modo semelhante, o uso do vinho durante o Pessach seguia uma estrutura ritual definida. O vinho possuía significado redentor no imaginário judaico do período, estando associado à libertação, à promessa divina e à expectativa de redenção futura, conforme as narrativas bíblicas e proféticas. Nesse contexto, o uso do cálice por Yeshua ocorre dentro de um sistema simbólico já estabelecido, no qual o vinho representa libertação, promessa e expectativa redentiva. Ao fazer referência a esses elementos, Yeshua não institui novos símbolos nem altera o rito pascal, mas se movimenta dentro da linguagem ritual do Pessach, empregando sinais já carregados de significado na tradição de seu tempo.

Essa dinâmica interpretativa se torna ainda mais clara à luz da expressão “fazei isto em memória de mim”, frequentemente utilizada como fundamento para a formulação posterior da chamada Santa Ceia. No pensamento judaico do período do Segundo Templo, memória não se limita a uma recordação subjetiva, mas está ligada à participação contínua na história por meio de práticas rituais. Tal compreensão se expressa na prática da hagadá [3], na qual a narrativa da libertação é transmitida e aplicada aos participantes da celebração, conforme orienta a própria Torá (Êxodo 13:8).

Nesse contexto, as palavras de Yeshua ao explicar o significado do pão e do cálice (Lucas 22:14-20) podem ser compreendidas como parte do discurso narrativo característico do Pessach, no qual o sentido da libertação é exposto e apropriado pelos participantes. Sua referência a si mesmo ocorre dentro desse quadro litúrgico já estabelecido, sem indicar alteração da estrutura da festa, de sua data ou de seu propósito. Assim, o Pessach permanece como o memorial bíblico da libertação, enquanto as palavras de Yeshua se inserem no horizonte interpretativo da própria celebração, tal como praticada no judaísmo do século I.

A menção à sua morte não estabelece um memorial independente, mas se insere na dinâmica da recordação própria da celebração pascal, na qual a redenção é verbalizada e aplicada aos participantes. A declaração de que voltaria a participar dessa refeição no mundo vindouro (Mateus 26:29) pressupõe, por sua vez, a continuidade do Pessach como celebração vigente, sem qualquer indicação de substituição ou reformulação ritual.

Associada a esse contexto celebrativo, a vigília também aparece como elemento significativo da noite pascal. A Torá descreve o Pessach como uma “noite de vigilância” ao ETERNO (Êxodo 12:42), expressão que ressalta seu caráter singular e atento, vinculado à memória da redenção. No período do Segundo Templo, a própria dinâmica do seder, marcada pela narrativa prolongada e pelo ensino transmitido aos participantes, frequentemente conduzia à extensão da celebração ao longo da noite. Os relatos indicam que, após a refeição pascal, Yeshua permaneceu em vigília e convidou seus discípulos a fazer o mesmo (Mateus 26:36-41; Marcos 14:32-40), situando essa prática dentro do mesmo horizonte simbólico da noite do Pessach.

Não se encontra nos evangelhos qualquer instrução explícita para que essa refeição fosse repetida diariamente, semanalmente ou em datas desvinculadas do calendário bíblico. Tampouco há indicação de substituição do Pessach por uma nova celebração. A prática posterior conhecida como “Santa Ceia” ou “Eucaristia”, refletem contextos históricos específicos, desenvolvidos em ambientes progressivamente afastados do judaísmo e do calendário festivo bíblico.

Dessa forma, a análise histórica e textual conduz à compreensão de que Yeshua celebrou o Pessach conforme a tradição judaica, sem romper com sua estrutura fundamental. A refeição não se apresenta como a instituição de um novo rito, mas como um momento em que o significado da festa é articulado dentro da própria narrativa bíblica da redenção. 



Notas de rodapé:

[1] Pessach (פסח) é a festa bíblica instituída na Torá para recordar a libertação dos filhos de Israel do cativeiro egípcio (Êxodo 12). O termo hebraico deriva da raiz pasach, cujo sentido está associado ao ato de “passar por cima” ou “poupar”, em referência ao episódio no qual as casas marcadas com o sangue do cordeiro foram preservadas da praga que atingiu os primogênitos do Egito. Celebrado anualmente no dia 14 do mês de Nissan, conforme o calendário bíblico, o Pessach marca o início da festa dos pães sem fermento e possui caráter memorial, pedagógico e identitário, sendo observado dentro de uma estrutura ritual definida, com elementos específicos e narrativa histórica transmitida de geração em geração (Êxodo 12:1-14; Levítico 23:4-8; Deuteronômio 16:1-8).


[2] O seder de Pessach refere-se à refeição cerimonial que inaugura a celebração do Pessach, realizada tradicionalmente no início do dia 15 de Nissan. O termo seder significa “ordem” e designa a sequência ritual da refeição, na qual são utilizados elementos simbólicos e recitada a hagadá, a narrativa da libertação do Egito. Embora a forma atual do seder tenha sido sistematizada no período rabínico posterior à destruição do Segundo Templo, suas bases encontram-se nos próprios textos bíblicos, que prescrevem o consumo do cordeiro, dos pães ázimos e das ervas amargas, bem como a transmissão oral da história da redenção aos participantes da celebração (Êxodo 12:8; 12:26-27; 13:8). No contexto do século I, o seder já funcionava como uma refeição memorial estruturada, inserida no calendário festivo judaico.


[3] Hagadá (הגדה), termo derivado do verbo hebraico nagad (“contar”, “relatar”), refere-se à prática de narrar e explicar a história da libertação do Egito durante a celebração do Pessach, conforme ordenado na Torá (Êxodo 12:26-27; 13:8). No pensamento bíblico hebraico, memória não se limita a uma recordação intelectual ou emocional, mas está associada à vivência contínua da história por meio de sua transmissão ritual. 


A hagadá funciona, portanto, como um memorial vivo, no qual cada geração é convidada a se reconhecer dentro da narrativa da redenção, sem alteração da estrutura da festa ou de seu tempo determinado. Nesse contexto, as palavras de Yeshua durante a refeição pascal, nas quais ele explica o significado do pão e do cálice (Lucas 22:14-20), podem ser compreendidas como parte desse ato narrativo característico do Pessach, no qual o sentido da libertação é exposto e aprofundado. Tal explicação não implica deslocamento, reformulação ou substituição da celebração, mas se insere no horizonte interpretativo já presente na tradição pascal do judaísmo do século I.





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