Por Cleiton Gomes
A ideia de que Pedro tenha fundado a igreja ou uma nova religião não encontra respaldo nem no texto bíblico nem na história do primeiro século. A crença popular de que Yeshua teria inaugurado, em Mateus 16:18, uma instituição totalmente nova, desligada do judaísmo, é fruto de uma construção teológica tardia, baseada em interpretações que desconsideram o contexto profético das Escrituras e o sentido original de algumas palavras gregas.
O termo grego οἰκοδομήσω (oikodomeo), geralmente traduzido como “edificar”, também carrega o sentido de “restaurar”, “reedificar” ou “reparar” (Dicionário Strong: G3618). William D. Mounce define-o como “consertar”, “embelezar” ou “ampliar uma construção” (Léxico Analítico do Novo Testamento Grego, Ed. Vida Nova, 2013, p. 437), enquanto F. Wilbur Gingrich o entende como “reconstruir”, “reedificar” ou “restaurar” (Léxico do Novo Testamento Grego/Português, Ed. Vida Nova, 1983, p. 144). Já ἐκκλησίαν (ekklesia), longe de significar uma igreja no sentido moderno, refere-se a uma assembleia ou congregação (Strong: G1577), equivalente ao hebraico qahal, termo usado no Tanach para designar o povo convocado diante do ETERNO. À luz desses significados, Mateus 16:18 se traduz de forma mais precisa como “sobre esta pedra restaurarei a minha congregação”, indicando continuidade histórica e espiritual, e não a criação de algo inédito.
O termo hebraico קָהָל (qahal) é essencial para entender a afirmação de Yeshua e o conceito bíblico de “igreja” no seu sentido original. Aparecendo mais de 120 vezes no Tanach, significa “assembleia”, “reunião” ou “congregação” convocada com um propósito específico. Diferente de um ajuntamento casual, o qahal é uma convocação formal para que o povo esteja diante do ETERNO, seja para adorar, ouvir instruções ou decidir questões da comunidade. Isso ocorre, por exemplo, na entrega da Torá no Sinai (Deuteronômio 9:10; 10:4) e nas reuniões para tratar de disciplina, como em Números 16. No período monárquico e pós-exílico, o qahal expressava a unidade do povo reunido em Jerusalém nas grandes festas ou em eventos de renovação da aliança, como em Neemias 8.
Durante o período do Segundo Templo, qahal adquiriu também uma dimensão escatológica, como mostram Isaías 43 e Miqueias 4, que preveem a união das nações ao qahal de Israel em Sião. Deuteronômio 23:1-8 revela seu aspecto jurídico, estabelecendo quem poderia ou não fazer parte, evidenciando que pertencer ao qahal era um status de aliança. Para os netsarim (nazarenos), Yeshua veio restaurar esse mesmo qahal iniciado no Sinai, reunificando Israel conforme Ezequiel 37 e incluindo as nações enxertadas, como Paulo explica em Romanos 11.
Como evidência de que Yeshua não estava incumbindo Pedro de criar uma nova religião nem de assumir autoridade central, Estevão declara em Atos 7:37-38 que a ekklesia já estava com Moisés no deserto, ouvindo a voz do anjo no Sinai e recebendo as palavras vivas da Torá. Isso demonstra que a assembleia mencionada por Yeshua não era uma entidade inédita, mas a mesma comunidade de Israel, formada no Sinai cerca de 1.200 anos antes de sua declaração a Pedro, agora convocada a passar por um processo de restauração. O pano de fundo profético dessa restauração encontra-se em Ezequiel 37:16-24, que anuncia a reunião da Casa de Israel e da Casa de Judá em um só povo, pondo fim à inimizade que os separava. A missão de Yeshua, portanto, não foi a fundação de uma nova religião, mas o início do cumprimento dessa promessa, unindo as tribos dispersas e reintegrando-as ao pacto.
Nesse cenário, Pedro não surge como fundador de algo independente, mas como um líder atuante dentro dessa restauração. Seu ministério concentrou-se principalmente entre judeus e prosélitos, preservando as práticas e o estilo de vida da Torá. Ele seguia frequentando o Templo (Atos 3:1), observava as prescrições alimentares (Atos 10:14) e ensinava com base nas Escrituras de Israel. A autoridade não estava centralizada em Pedro como figura final, pois inexistia esse sistema entre os apóstolos, que analisavam e decidiam em conjunto as questões da comunidade, como se vê no Concílio de Jerusalém (Atos 15). A liderança nazarena era colegiada e tinha seu centro em Jerusalém sob Tiago, irmão de Yeshua, e não em um modelo episcopal romano.
Vale lembrar Isaías 28:16 e Salmos 118:22, que apresentam declarações proféticas de grande peso teológico. No contexto imediato de Isaías, o profeta adverte contra alianças políticas e falsas seguranças em que o povo confiava, afirmando que a verdadeira estabilidade viria da pedra que o próprio ETERNO colocaria em Sião. Na tradição judaica, essa “pedra” é símbolo da fidelidade à Torá e do plano de redenção estabelecido pelo ETERNO. No entendimento dos apóstolos, essa profecia apontava para o Messias, como confirmam Pedro (1 Pedro 2:6) e Paulo (Romanos 9:33), ambos apresentando Yeshua como a pedra fundamental sobre a qual a congregação é edificada. Paulo reforça de forma categórica, em 1 Coríntios 3:11, que “ninguém pode colocar outro fundamento além de Yeshua, o Messias”.
Ao declarar, em Mateus 16:18, que sobre “esta pedra” restauraria sua qahal, Yeshua retoma exatamente o sentido dessa profecia messiânica: o fundamento não é um homem comum, mas Ele próprio. Pedro se conecta a essa rocha não por ser o alicerce, mas por ter feito a confissão de que Yeshua é o Messias e agente da redenção prometida (Mateus 16:16). Dessa forma, Pedro não é a pedra em essência, mas se identifica com ela porque proclama a verdade central sobre a qual toda a comunidade do pacto é edificada. O próprio Pedro reconheceu isso posteriormente, afirmando que Yeshua é a “pedra viva” e a “pedra principal” (1 Pedro 2:4-8).
A associação de Pedro à fundação da Igreja Católica Romana não encontra base nos eventos do primeiro século, mas foi resultado de narrativas formadas séculos depois, impulsionadas por interesses tanto teológicos quanto políticos. Escritores e líderes eclesiásticos, como Irineu de Lião e Eusébio de Cesareia, passaram a apresentar Pedro como primeiro bispo romano, criando uma linha direta de sucessão para legitimar a autoridade da sede romana. Essa narrativa foi estrategicamente utilizada para sustentar a primazia papal, isto é, a noção de que o bispo de Roma deveria ser reconhecido como autoridade máxima sobre toda a cristandade, assegurando à Igreja de Roma um papel central e incontestável no panorama religioso mundial.
Essa construção histórica em torno de Pedro como fundador da Igreja de Roma contrasta fortemente com o relato bíblico e com o funcionamento real da comunidade nazarena do primeiro século. Quando analisamos Atos 2 à luz desse contexto, percebemos que o evento de Pentecostes não representou a criação de uma nova igreja, mas a manifestação inicial do processo de restauração iniciado por Yeshua. O derramamento do Espírito sobre os discípulos, reunidos para a celebração de Shavuot, marcou o fortalecimento da missão de reunir Israel e anunciar o Reino, e não uma ruptura com o judaísmo.
Em suma, a separação que deu origem ao cristianismo como religião distinta ocorreu de forma gradual, impulsionada por decisões e influências culturais posteriores à morte dos apóstolos, e não por iniciativa de Pedro ou dos primeiros líderes nazarenos. Dessa forma, a análise conjunta do texto bíblico, do contexto histórico e da profecia revela que Pedro não fundou a igreja institucional como entendida hoje, nem iniciou uma nova religião. Ele foi um dos principais líderes do movimento nazareno, plenamente enraizado na Torá e na esperança messiânica de Israel, participando da missão de restaurar a congregação já existente desde Moisés e anunciada pelos profetas como um só povo sob um só Rei.
Seja iluminado!!!
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