Por Cleiton Gomes
A leitura dos relatos do nascimento do Messias, especialmente nos evangelhos sinóticos, exige mais do que devoção. Exige contexto histórico e linguístico. Quando o texto afirma que não havia lugar na hospedaria e que a criança foi colocada numa manjedoura (Lucas 2:7), a imagem popular moderna costuma projetar um estábulo europeu medieval, fechado e isolado, destinado exclusivamente aos animais. Essa construção mental não nasce do texto bíblico, mas da imaginação moldada por referências culturais alheias ao mundo semita do primeiro século.
No contexto judaico do primeiro século, a cena aponta para outra direção. Quando o relato é lido à luz da Peshitta aramaica, o texto se torna cristalino. O termo utilizado em Lucas 2:7 é ܐܘܪܝܐ, transliterado uriyā, uma palavra que não descreve uma construção específica, mas a função de acomodar ou colocar algo em determinado espaço. Não se trata de um termo técnico para estábulo, curral ou recinto fechado de animais, tampouco pressupõe a presença deles. Seu campo semântico é funcional e neutro, indicando apenas um local onde algo foi posto, sem criar imagens arquitetônicas ou rurais. Assim, uriyā aponta para um espaço simples e utilitário, compatível tanto com habitações modestas quanto com abrigos temporários usados em períodos de peregrinação, afastando o leitor do cenário romantizado que se consolidou séculos depois por influência artística e catequética.
A compreensão dessa palavra conduz naturalmente à ampliação do cenário histórico em que o nascimento ocorre. Uma vez que o texto descreve um espaço simples de acomodação, compatível com abrigos provisórios e estruturas temporárias, torna-se necessário considerar os períodos do calendário judaico em que esse tipo de ambiente era amplamente utilizado. É justamente nesse ponto que o contexto das grandes festas de peregrinação ganha relevância, pois elas redefiniam a dinâmica urbana, residencial e familiar da Judeia do primeiro século.
A festa de Sucot [1] ocupava um lugar central no calendário judaico e alterava de forma significativa a dinâmica social e habitacional da Judeia. Jerusalém tornava-se o principal polo de convergência, recebendo multidões vindas de diversas regiões, enquanto seus arredores e vilas próximas absorviam o excedente populacional gerado pela peregrinação. Famílias inteiras deslocavam-se para cumprir o mandamento de habitar em cabanas, estruturas simples e provisórias que evocavam a experiência do deserto.
A sucá [2] não simbolizava miséria, mas obediência, memória coletiva e dependência do ETERNO. Nesse período, o uso de espaços improvisados e adaptações habitacionais não era exceção, mas parte esperada da realidade. Lido a partir do contexto cultural do primeiro século, o emprego de um espaço funcional de acomodação dentro de um abrigo temporário (ܐܘܪܝܐ, uriyā) não causa estranhamento algum, pois não corresponde à imagem ocidental de uma manjedoura rural isolada, mas a um elemento simples e utilitário integrado ao cotidiano semita daquele tempo.
É justamente nesse ponto que surge a objeção do judaísmo rabínico posterior. Segundo formulações haláchicas desenvolvidas séculos após a destruição do Segundo Templo, o parto não deveria ocorrer dentro de uma sucá, pois isso comprometeria a finalidade ritual do mandamento. A partir dessa halachá [3] tardia, alguns chegam ao ponto de negar a historicidade do nascimento do Messias ou de acusar seus pais de transgressão. O problema dessa abordagem é que tal halachá não existia na forma sistematizada no primeiro século. Projetar normas rabínicas posteriores sobre um período anterior é um erro histórico clássico. Trata-se de anacronismo.
Quando se afirma, no debate judaico posterior, que um nascimento não poderia ocorrer dentro de uma sucá, essa ideia não surge do texto bíblico, mas do desenvolvimento haláchico rabínico após a destruição do Segundo Templo. O ponto central está na definição da sucá como uma habitação temporária destinada a uma experiência ritual específica, e não como um espaço apropriado para situações que envolvem risco, dor intensa ou condições consideradas incompatíveis com o mandamento. Essa discussão aparece de forma dispersa em fontes talmúdicas e, mais tarde, é sistematizada pelos grandes códigos haláchicos medievais [4].
Na Mishná, tratado Sucá 2:4, lê-se que pessoas enfermas e aqueles que cuidam delas estão isentos da obrigação de permanecer na sucá. O texto não menciona parto diretamente, mas estabelece um princípio fundamental. A sucá exige que a pessoa esteja em condições normais de habitação. Qualquer situação que cause sofrimento significativo ou impossibilite uma vivência adequada da mitzvá dispensa o indivíduo de permanecer nela. Esse princípio é reforçado no Talmud Babilônico, tratado Sucá 26a, onde se afirma que “aquele que sofre está isento da sucá”, pois a Torá não foi dada para causar sofrimento físico desnecessário. A partir dessa lógica, rabinos posteriores concluíram que uma mulher em trabalho de parto não deveria permanecer na sucá, não por impureza do local em si, mas por inadequação da situação à finalidade do mandamento.
Rashi (Rabbi Shlomo Yitzchaki) comentando Sucá 26a, explica que a sucá deve se assemelhar a uma residência comum. Se a pessoa não habitaria uma casa em determinadas condições, também não deveria permanecer na sucá. Embora Rashi não mencione parto explicitamente, sua definição abre espaço para aplicações posteriores, pois um nascimento claramente não corresponde ao padrão de habitação ordinária.
No Shulchan Aruch, escrito por Yosef Karo no século XVI, em Orach Chaim 640:3, estabelece-se que pessoas submetidas a desconforto significativo estão dispensadas da obrigação de permanecer na sucá. Comentadores posteriores desse código, como o Magen Avraham e o Mishná Berurá, este último escrito por Israel Meir Kagan, ampliaram a aplicação desse princípio para situações que envolvem enfermidade, risco ou dor intensa. Em particular, o Mishná Berurá 640:6 aplica explicitamente essa dispensa ao caso de mulheres em trabalho de parto, afirmando que, segundo a prática rabínica normativa posterior, a sucá não é considerada um ambiente apropriado para esse tipo de situação.
Outro texto frequentemente citado é o Talmud, tratado Niddah 31a, que discute o parto dentro das categorias de dor extrema e risco à vida. Embora o tratado trate majoritariamente de pureza familiar, ele reforça a ideia de que o nascimento é um evento que suspende obrigações rituais comuns. Esse pano de fundo haláchico contribuiu para a conclusão posterior de que o parto deveria ocorrer em ambiente fechado e estável, não em uma estrutura provisória como a sucá.
O ponto decisivo, porém, é histórico. Todas essas fontes refletem um judaísmo moldado pela experiência pós Templo, pela sistematização da halachá e pela necessidade de normatizar a vida judaica na diáspora. No primeiro século, período do nascimento do Messias, não existia Mishná redigida, não existia Talmud compilado e tampouco códigos como o Shulchan Aruch. Havia costumes, debates e interpretações plurais, mas não um sistema fechado e autoritativo capaz de invalidar retrospectivamente um evento histórico.
Além disso, nenhuma dessas fontes afirma que um nascimento em uma sucá seja uma transgressão da Torá. O que se afirma é que a mulher está isenta da obrigação de permanecer na sucá. Isenção não equivale a proibição. Transformar uma dispensa haláchica posterior em prova de impossibilidade histórica é um salto lógico que não se sustenta. A halachá rabínica oferece orientação normativa para a prática comunitária, não um critério para negar a plausibilidade de eventos ocorridos antes de sua própria formulação.
Quando alguns círculos do judaísmo ortodoxo rejeitam a possibilidade do nascimento do Messias no contexto de Sucot com base na halachá, o fazem apoiados em fontes legítimas dentro do seu sistema, mas aplicadas fora do seu devido tempo histórico. A Torá não proíbe o nascimento de uma criança em uma sucá. O mandamento é habitar nela, alegrar-se nela e recordar a provisão do ETERNO. Transformar a sucá em um espaço impróprio para a vida é inverter completamente o seu significado. A sucá aponta para a fragilidade humana sustentada pela fidelidade divina. O nascimento de uma criança, longe de profanar esse espaço, o ressignifica de forma profunda.
Relacionar o nascimento do Messias a Sucot não implica forçar uma data litúrgica, mas reconhecer uma coerência teológica. Sucot é a festa da habitação divina no meio do povo. Celebra a presença que acompanha, protege e sustenta. O nascimento do Messias nesse contexto comunica uma mensagem clara sem necessidade de elaboração simbólica excessiva: A redenção não se manifesta em palácios, mas em estruturas simples. Não surge no conforto do poder, mas na realidade concreta da obediência.
A rejeição dessa possibilidade revela menos sobre o texto bíblico e mais sobre a necessidade de preservar uma tradição posterior. Quando a halachá passa a ser usada como filtro absoluto para julgar eventos anteriores a ela mesma, deixa de ser instrumento de leitura e se torna mecanismo de negação. A Escritura, porém, deve ser lida em seu tempo, em seu espaço, em sua língua e em sua cultura.
O próprio Tanach demonstra que a vida do povo de Israel nem sempre ocorreu em condições ideais ou normativas. Diversos episódios mostram homens e mulheres vivendo em situações de deslocamento e improviso sem que isso fosse tratado como transgressão. Abraão viveu em tendas durante toda a sua vida, conforme relatado em Gênesis 12:8 e Gênesis 18:1. Jacó passou longos períodos fora de sua terra em condições precárias, conforme Gênesis 28:10-22. A experiência de Israel no deserto foi marcada pela habitação temporária, conforme lembrado em Levítico 23:42-43.
Além disso, o princípio de “pikuach nefesh” [5], que prioriza a preservação da vida, não elimina automaticamente a possibilidade de uso de estruturas temporárias. Ele apenas impede situações que coloquem a vida em risco quando alternativas melhores estão disponíveis. Aplicar esse princípio a um contexto do século I utilizando parâmetros médicos modernos é outro anacronismo evidente. Belém não dispunha de hospitais, maternidades ou ambientes estéreis, e o parto ocorria onde a mulher estivesse, com os recursos disponíveis.
A própria Festa de Sucot nasce dessa memória. Ela não celebra conforto, estabilidade ou estrutura permanente, mas dependência, transitoriedade e confiança. O mandamento bíblico ordena que Israel habite em cabanas para lembrar que o povo viveu assim no deserto, conforme “Levítico 23:42”. O texto não impõe padrões arquitetônicos rigorosos, nem descreve condições ideais, mas remete a uma realidade histórica concreta.
A Escritura oferece diversos exemplos de nascimentos ocorrendo fora de ambientes domésticos convencionais. Raquel deu à luz em viagem e morreu no caminho, conforme “Gênesis 35:16-19”. A esposa de Finéias entrou em trabalho de parto em um momento de crise nacional, como relatado em “1 Samuel 4:19”. Em nenhum desses casos o texto sugere impropriedade religiosa ou violação de mandamentos.
O nascimento de Yeshua ocorre dentro desse mesmo padrão bíblico de deslocamento e excepcionalidade. Os evangelhos indicam que José e Maria estavam em viagem por causa de um recenseamento, conforme “Lucas 2:1-5”. O nascimento acontece fora do ambiente doméstico tradicional, não por escolha ritual, mas por circunstância histórica. O texto não descreve um planejamento prévio, mas um acontecimento inserido em um contexto de mobilidade.
Considerar a possibilidade de um nascimento em uma estrutura temporária não implica afirmar que tal estrutura tenha sido escolhida por motivos rituais. Significa apenas reconhecer que o parto ocorreu onde os pais se encontravam, em um contexto judaico, durante um período do ano compatível com atividades agrícolas e celebrações festivas, conforme indicado em Lucas 2:8.
A tentativa de invalidar essa possibilidade com base em normas rabínicas posteriores ignora a própria flexibilidade reconhecida pela halachá diante de situações reais. O judaísmo nunca tratou a vida humana como subordinada a formalismos rígidos, especialmente em contextos de deslocamento ou emergência. O princípio sempre foi preservar a vida, a dignidade e a realidade concreta das pessoas.
Outro ponto relevante é a distinção entre intenção e circunstância. O texto bíblico não afirma que José e Maria construíram uma cabana com o propósito de realizar ali um parto. Afirma apenas que o nascimento ocorreu onde eles estavam. Estar em uma estrutura temporária quando o trabalho de parto começa não equivale a planejar o parto como ato ritual.
A Escritura não apresenta o nascimento do Messias como um evento litúrgico regulamentado. Não há instruções sobre local, rito ou procedimento religioso específico. O foco do texto está no significado do evento, não em sua ritualização. Isso está em consonância com a forma como a Escritura trata outros acontecimentos centrais da história da redenção.
Em síntese, a objeção haláchica utilizada para negar a legitimidade do nascimento do Messias não se sustenta nem biblicamente nem historicamente. Ela projeta normas tardias sobre um período anterior, ignora o caráter circunstancial do relato e impõe ao texto exigências que ele jamais apresentou. O nascimento de Yeshua, tal como descrito nos Evangelhos, não viola a Torá, não contradiz o judaísmo do seu tempo e não afronta a história. O conflito surge apenas quando se tenta julgar o passado com categorias que ainda não existiam.
Seja iluminado!!!
Notas de rodapé:
[1] Sucot: termo hebraico סֻכּוֹת (Sukkōt), conhecido como Festa das Cabanas, uma das festas bíblicas de peregrinação. Instituída na Torá, especialmente em Levítico 23:42-43, celebra a habitação temporária do povo de Israel no deserto e enfatiza a presença, o cuidado e a provisão do ETERNO ao longo da história.
[2] Sucá: termo hebraico סֻכָּה (sukkāh), que designa uma cabana ou abrigo temporário utilizado durante a Festa de Sucot. A sucá recorda a experiência de Israel no deserto e simboliza transitoriedade, dependência e confiança na provisão do ETERNO. Não representa miséria nem impureza, mas obediência e memória histórica, sem exigências arquitetônicas rígidas definidas pela Torá.
[3] Halachá: termo hebraico הֲלָכָה (halakhá), derivado do verbo halakh (“andar”, “caminhar”), que designa o conjunto de normas jurídicas e práticas que orientam a vida judaica. Baseia-se na Torá escrita e em sua interpretação pela Torá oral, registrada na Mishná, no Talmud e em códigos posteriores. A halachá organiza a vivência cotidiana dos mandamentos conforme contextos históricos específicos e não deve ser aplicada de forma anacrônica para julgar eventos anteriores à sua formulação.
No período do Segundo Templo, a halachá ainda estava em processo de formação, com múltiplas correntes disputando interpretação. Fariseus, saduceus, essênios e outros grupos não operavam com um código unificado como o que surgiria após a destruição do Templo. Portanto, afirmar que o nascimento do Messias violou uma halachá específica pressupõe um sistema normativo que ainda não estava consolidado. É como multar alguém por uma lei que só seria escrita séculos depois.
[4] Códigos haláchicos medievais: obras jurídicas rabínicas produzidas principalmente entre os séculos XII e XVI, com o objetivo de sistematizar e organizar a halachá a partir da Mishná, do Talmud e das decisões rabínicas anteriores. Esses códigos buscaram padronizar a prática judaica em contextos pós Templo e de diáspora, sendo exemplos notáveis o Mishné Torá de Maimônides e o Shulchan Aruch de Yosef Karo. Refletem realidades históricas específicas e não devem ser aplicados de forma retroativa para julgar períodos anteriores à sua elaboração.
[5] Pikuach nefesh: princípio central da halachá que estabelece a preservação da vida humana como valor supremo. Derivado da expressão hebraica פִּקוּחַ נֶפֶשׁ (pikuach nefesh, “salvaguarda da vida”), determina que a maioria dos mandamentos pode ser suspensa quando há risco à vida. Esse princípio orienta decisões práticas diante de situações de perigo real e concreto, devendo ser aplicado conforme o contexto histórico e as condições disponíveis, sem pressupor padrões médicos ou sociais inexistentes em períodos anteriores.
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