Por Cleiton Gomes
Entre as narrativas mais enigmáticas dos evangelhos está a fuga da família de Yeshua para o Egito. O evangelho de Mateus relata que, logo após o nascimento do Messias, um anjo apareceu a José em sonho e ordenou: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, porque Herodes procurará o menino para o matar” (Mateus 2:13).
Essa breve passagem gerou muitas discussões entre estudiosos e religiosos, tanto sobre o tempo exato da permanência no Egito quanto sobre possíveis contradições com o relato de Lucas. No entanto, ao analisar cuidadosamente os contextos histórico e espiritual, percebemos que não há conflito algum. Ao contrário, há uma harmonia profunda que conecta o exílio da família de Yeshua à própria história de Israel e ao plano redentor do ETERNO.
Herodes, conhecido como “o Grande”, governava a Judeia com poder e crueldade sob o domínio de Roma. Pouco tempo depois do nascimento de Yeshua, ele ordenou a matança dos meninos de Belém com até dois anos de idade. Foi nesse cenário que José, obedecendo à instrução celestial, partiu com Maria e o menino em direção ao Egito.
Herodes faleceu pouco tempo depois desse episódio, o que permite estimar quanto tempo a família de Yeshua permaneceu fora de Israel. Segundo a cronologia tradicional preservada por Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 17.6.4; 17.8.1), Herodes morreu em 4 a.E.C., logo após um eclipse lunar e antes do Pessach judaico. Considerando que Yeshua provavelmente nasceu entre 6 e 5 a.E.C., durante o final do reinado de Herodes, a fuga para o Egito deve ter ocorrido quando ele ainda era um bebê de poucos meses.
Como não existe o “ano zero” na contagem histórica, a diferença entre 6 e 4 a.E.C. corresponde a cerca de dois anos reais, o que se encaixa perfeitamente no relato de Mateus, segundo o qual Herodes mandou matar os meninos “de dois anos para baixo” (Mateus 2:16). Isso significa que a permanência da família no Egito foi breve, provavelmente entre um e dois anos, até a morte de Herodes e o retorno seguro a Israel. Essa estimativa é amplamente sustentada por estudiosos como Jack Finegan, Emil Schürer, Harold Hoehner e F. F. Bruce, que consideram essa cronologia a mais coerente com as fontes bíblicas e históricas disponíveis.
Segundo o historiador Flávio Josefo, Arquelau, filho de Herodes, governou a Judeia com extrema crueldade, o que provocou revoltas e queixas do povo diante de César Augusto. Por causa disso, foi deposto e exilado em Viena, na Gália, cerca de dez anos depois de ter assumido o trono (Antiguidades Judaicas 17.13.2). As moedas e registros administrativos da época indicam que o reinado de Arquelau começou exatamente após a morte de Herodes em 4 a.E.C. Isso confirma que a cronologia tradicional continua sendo a mais coerente.
Esse cenário explica a decisão de José ao retornar do Egito. Quando o anjo anunciou que Herodes havia morrido, ele se preparou para regressar a Israel, mas, ao saber que Arquelau reinava na Judeia, temeu voltar a Belém e preferiu estabelecer-se em Nazaré da Galileia (Mateus 2:22). A Galileia, por sua vez, estava sob o domínio de Herodes Antipas, outro filho de Herodes, cuja administração era mais estável e menos violenta. Assim, a escolha de José foi uma decisão prudente e providencial.
Flávio Josefo também registra que o recenseamento ordenado por Quirino ocorreu por volta de 6 E.C., já sob o governo de Arquelau, o que, à primeira vista, pareceria incompatível com o nascimento de Yeshua, que se deu antes de 4 a.E.C., ainda durante o reinado de Herodes, o Grande.
A aparente divergência entre Mateus e Lucas surge em Lucas 2:1–2, onde é mencionado o decreto de César Augusto para um recenseamento supervisionado por Quirino, governador da Síria. O problema cronológico aparece porque o recenseamento mais conhecido de Quirino, segundo Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 18.1.1–2), foi realizado após a deposição de Arquelau, cerca de dez anos depois da morte de Herodes, o Grande (Antiguidades Judaicas 17.13.2). Esse levantamento, conduzido por Quirino em 6 E.C., visava registrar os bens dos judeus quando a Judeia foi incorporada à província romana da Síria.
Por essa razão, muitos estudiosos concluíram que Mateus e Lucas se referem a eventos distintos, uma vez que Mateus situa o nascimento de Yeshua nos dias de Herodes, enquanto Lucas o relaciona a um recenseamento aparentemente posterior. Contudo, o próprio texto de Lucas oferece uma pista crucial ao afirmar que esse foi “o primeiro recenseamento”. A expressão indica que houve mais de um, sendo o primeiro um levantamento preliminar, realizado enquanto Herodes ainda estava vivo e Quirino já exercia funções administrativas parciais na Síria, ainda que não fosse o governador oficial.
Os censos romanos eram processos extensos e graduais. Em muitas províncias, especialmente nas regiões orientais, eram executados em etapas: começavam com registros locais e apenas anos depois eram finalizados, quando a administração imperial consolidava os dados para fins fiscais. É nesse contexto que o relato de Lucas se encaixa: o evangelista provavelmente faz referência à fase inicial desse recenseamento, ocorrida durante o reinado de Herodes, o que o coloca em harmonia com o relato de Mateus e elimina a ideia de contradição entre ambos.
Essa compreensão, segundo a qual os censos podiam ser iniciados antes da nomeação formal de um governador e concluídos posteriormente, é amplamente defendida por uma corrente significativa de historiadores e biblistas de referência, como Emil Schürer, Jack Finegan, William Ramsay, Harold Hoehner e F. F. Bruce [1]. Lucas e Mateus não se opõem, mas se completam. Mateus enfatiza o aspecto profético e messiânico da fuga e do retorno; Lucas, o contexto político e social da Judeia sob o censo romano. Ambos descrevem a mesma época sob perspectivas diferentes. Quando compreendemos isso, a harmonia entre os textos se torna evidente.
Além da precisão histórica, há um profundo significado espiritual por trás da ida de Yeshua ao Egito. Mateus cita a profecia de Oséias: “Do Egito chamei o meu filho” (Oséias 11:1). No texto original, o profeta fala de Israel, que foi tirado da escravidão por meio de Moisés. Ao aplicar esse versículo a Yeshua, Mateus mostra que o Messias revivia a própria história de Israel. Assim como o povo foi salvo da escravidão egípcia, Yeshua também foi preservado do rei que queria matá-lo. O foco de Mateus, portanto, não é geográfico, mas simbólico: o Messias está repetindo o caminho do povo escolhido, inaugurando um novo êxodo espiritual.
Esse paralelismo é amplamente explorado nos midrashim judaicos. O Egito representa o lugar do exílio, da opressão e, ao mesmo tempo, do nascimento de uma nova fase espiritual. Israel nasceu como nação ao sair do Egito, e Yeshua iniciou sua missão ao retornar dele. O exílio no Egito simboliza o aparente silêncio do ETERNO diante da injustiça, mas também o tempo de preparação antes da libertação. Assim, o breve período de Yeshua no Egito não foi apenas uma fuga, mas um cumprimento profético e simbólico: o Salvador compartilhou o mesmo caminho do seu povo, experimentando o exílio antes de trazer a redenção.
Historicamente, o Egito também era um refúgio seguro para judeus. Alexandria abrigava uma das maiores comunidades judaicas fora de Israel, com sinagogas, escolas e liberdade religiosa. É provável que José e Maria tenham se abrigado entre esses irmãos da fé, o que mostra que a providência divina já havia preparado um lugar de descanso e sustento. O ETERNO nunca abandona os seus, nem mesmo em terras estrangeiras.
Quando observamos todos esses elementos juntos, percebemos que não há qualquer contradição entre Mateus e Lucas. Yeshua nasceu no tempo de Herodes, foi levado ao Egito por segurança e retornou em poucos anos, cumprindo as Escrituras. As diferenças entre os evangelhos não são erros, mas complementos que nos ajudam a enxergar a plenitude do propósito divino.
O Egito, na história de Israel, sempre foi símbolo de exílio e, ao mesmo tempo, de transformação. Lá o povo aprendeu a depender do ETERNO antes de receber a libertação. Yeshua reviveu essa trajetória. Sua ida ao Egito aponta para o mistério da redenção: Ele entrou no símbolo do exílio para trazer de volta os que estavam perdidos. Saiu do Egito não apenas geograficamente, mas espiritualmente, conduzindo toda a humanidade ao caminho da restauração.
Portanto, o tempo que Yeshua passou no Egito tem um valor imensurável. Foi o elo entre o passado e o futuro, entre o êxodo de Israel e o início da nova aliança prometida pelos profetas. Aquele que foi chamado “do Egito” é o mesmo que um dia chamará o Seu povo de todos os cantos da terra para o reino de justiça e paz.
Bibliografia
[1] Emil Schürer, A History of the Jewish People in the Time of Jesus Christ, vol. I — Explica que os recenseamentos romanos eram demorados e divididos em fases, especialmente nas províncias orientais, onde a resistência judaica e as dificuldades logísticas atrasavam a execução completa do processo.
Jack Finegan, Handbook of Biblical Chronology (rev. ed., 1998) — Observa que Quirino pode ter exercido funções administrativas na Síria antes de 6 E.C., participando de um recenseamento anterior, parcial ou preparatório, ligado ao fim do reinado de Herodes.
William Ramsay, The Bearing of Recent Discovery on the Trustworthiness of the New Testament (1915) — Argumenta que os censos imperiais eram processos gradativos, iniciados localmente e concluídos apenas quando os dados eram validados em Roma.
Harold Hoehner, Chronological Aspects of the Life of Christ (1977) — Reforça a hipótese de que Lucas 2:2 se refere a uma fase inicial ou “primeira” operação censitária, conduzida sob a supervisão de Quirino antes de seu governo oficial.
F. F. Bruce, The New Testament Documents: Are They Reliable? — Destaca que o termo grego “πρώτη” (prōtē, “primeiro”) usado por Lucas sugere anterioridade em relação a outro recenseamento posterior — justamente o de 6 E.C. mencionado por Josefo.
Seja iluminado!!!
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