Por Cleiton Gomes
A carta de Paulo aos Coríntios foi dirigida a uma comunidade complexa, instalada em uma cidade grega que reunia pessoas de várias origens, idiomas, religiões e costumes. Essa mistura tornava Corinto um centro de riqueza, mas também um terreno fértil para conflitos morais, motivo pelo qual Paulo precisou escrever suas cartas corrigindo excessos e desequilíbrios dentro da convivência comunitária.
Judeu fariseu e seguidor de Yeshua, Paulo aborda em sua primeira carta não apenas questões teológicas, mas também práticas de convivência e ética. O capítulo 11 é um exemplo notável disso. Ali, ele trata da reverência e da ordem nas reuniões, mas principalmente da forma inadequada com que os discípulos estavam conduzindo suas refeições comunitárias.
Essas reuniões, mais tarde chamadas de “refeições de ágape”, não possuíam relação alguma com ritos gregos ou celebrações pagãs. Não existe qualquer evidência bíblica, histórica ou arqueológica que as vincule a cultos pagãos gentílicos. Todas as fontes antigas, tanto judaicas quanto das comunidades do primeiro século, descrevem-nas como encontros de fraternidade e partilha, centrados no amor e na comunhão entre os discípulos.
Um dos testemunhos mais diretos sobre essa prática está em Tertuliano, que, por volta do final do século II, descreveu detalhadamente o ágape como uma refeição conduzida com moderação, respeito e solidariedade. Ele afirma: “A refeição, que entre nós se chama ágape, tem por objetivo não a dissolução, mas a moderação. Comemos o suficiente para saciar a fome, bebemos o suficiente para satisfazer a sede. Honramos os pobres com atenção, e o amor é o tema central” (Apologeticum, 39). Essa descrição confirma que o ágape era um encontro de caráter comunitário e moral, sem qualquer vínculo com ritos pagãos, preservando o ideal de amor prático e igualdade herdado da tradição judaica.
A palavra “ágape” (ἀγάπη), no grego koiné, carrega um significado profundo: é o amor que se doa sem interesse, que transcende sentimentos e se revela em ações. Era esse amor que sustentava a vida comunitária dos primeiros discípulos de Yeshua. O ágape não era um evento, mas um modo de viver. Comer juntos, cuidar uns dos outros e meditar nas palavras da Torá e dos profetas era a expressão natural da fé viva.
A ideia de uma suposta origem pagã, encontrada em notas de rodapé de algumas Bíblias, é mera interpretação dos editores e não tem base documental. Nenhum autor judeu ou romano da Antiguidade fez tal associação. Pelo contrário, o ágape nasce das próprias tradições de Israel, profundamente marcadas pela hospitalidade e pela solidariedade. Entre as práticas que refletem esse espírito está a chavruta (חַבְרוּתָא), uma das formas mais antigas de aprendizado no judaísmo.
A palavra chavruta vem da raiz חבר (chaver), que significa “amigo” ou “companheiro”, e descreve o estudo em parceria, quando dois estudantes se reúnem para ler e discutir as Escrituras. Esse método valoriza o diálogo, a amizade e a busca conjunta pela verdade. As reuniões de ágape podem ser vistas como uma chavruta ampliada, em que o alimento e a Palavra se unem para fortalecer o vínculo espiritual da comunidade.
A refeição comunitária era símbolo de igualdade. Ricos e pobres, líderes e servos, todos partilhavam o mesmo pão e o mesmo cálice. Contudo, em Corinto, esse espírito começou a se corromper. Alguns comiam em abundância enquanto outros passavam fome. A mesa, que deveria refletir a unidade do corpo messiânico, havia se tornado palco de egoísmo. Paulo denuncia com firmeza: “Quando vos ajuntais, não é para comer a ceia do Senhor” (1 Co 11:20).
Sua crítica não recai sobre a refeição em si, mas sobre a falta de discernimento espiritual e respeito comunitário. O problema era o abandono do verdadeiro sentido do ágape, o amor que coloca o outro em primeiro lugar.
A expressão “ceia do Senhor” (deipnon kyriakon, em grego) não se refere à chamada “santa ceia”, “eucaristia” ou o “seder de Pessach”. Quando Paulo recorda o gesto de Yeshua, ele não estava ministrando o rito, mas evocando um princípio: o ato de repartir o pão simboliza unidade, humildade e reverência. Cada refeição entre irmãos poderia se tornar um espaço de comunhão espiritual, desde que conduzida com amor e respeito.
É importante notar que a palavra “ágape” em si não aparece no texto de 1 Coríntios 11, mas o conceito está claramente presente. A ideia de uma refeição fraternal e solidária está implícita na forma como Paulo descreve os encontros da comunidade. Outras passagens, como Judas 1:12 e 2 Pedro 2:13, mencionam diretamente as “refeições de ágape”, confirmando que essa prática era comum entre os discípulos.
Essas refeições tinham origem nas tradições judaicas. O povo de Israel sempre associou o alimento à gratidão e à santificação. O birkat hamazon (bênção após as refeições) era o momento de lembrar que todo sustento vinha das mãos do ETERNO. Da mesma forma, os seguidores de Yeshua se reuniam para orar, agradecer e fortalecer os laços da comunidade.
Ao falar sobre o pão e o cálice, Paulo recupera esse significado. “O pão que partimos não é a comunhão do corpo do Messias?” (1 Co 10:16). O pão simboliza a vida e a dependência diária do ETERNO, enquanto o cálice representa alegria, redenção e aliança. Partilhar esses elementos era reconhecer a unidade em torno de um mesmo propósito.
Entretanto, em Corinto, alguns haviam profanado esse valor. Uns transformavam a refeição em banquete privado, outros se embriagavam. Paulo reage com severidade: “Se alguém tem fome, coma em casa, para que não vos ajunteis para condenação” (1 Co 11:34). Ele busca restaurar a dignidade e a pureza espiritual da mesa messiânica.
A maioria dos coríntios era de origem gentílica e desconhecia os costumes judaicos de pureza e ordem. Por isso, Paulo os instrui a compreender que a comunhão não era mero encontro social, mas expressão da unidade do corpo. O problema, portanto, não era teológico, e sim ético: a falta de amor.
Quando cita Yeshua, Paulo reconecta a mesa à memória do Mestre: “Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que venha” (1 Co 11:26). Ele não está instituindo uma liturgia, mas lembrando que a refeição é um compromisso de vida. Participar dela é afirmar o desejo de viver conforme o exemplo do Messias.
Por isso, “quem come e bebe indignamente” (v. 29) é aquele que participa sem discernimento, ignorando o sofrimento ou a necessidade do irmão. Tal atitude contradiz o ensino de Yeshua.
Paulo também associa as doenças e fraquezas que alguns estavam sofrendo à falta de discernimento espiritual. Isso reflete uma visão judaica antiga, na qual o pecado coletivo traz consequências físicas e sociais. A comunidade devia purificar-se moralmente para permanecer saudável e unida.
É interessante notar que o verbo “discernir” no versículo 29 vem do grego diakrino, que significa separar, distinguir ou avaliar corretamente. Paulo está pedindo que cada um avalie sua própria conduta antes de participar da refeição. O problema não estava no pão ou no vinho, mas na disposição do coração.
A ideia de partilha sempre esteve presente no judaísmo. Em Deuteronômio 16:11, o ETERNO ordena que o povo se alegre nas festas junto com os órfãos, viúvas e estrangeiros. O mesmo princípio de inclusão deveria reger o ágape. Por isso, Paulo insiste que todos tenham acesso à mesa, sem distinções de classe ou posição.
O capítulo 11, então, revela a profunda preocupação de Paulo com a santidade e a integridade da comunidade. Ele deixa claro que a comunhão com o corpo do Messias é, ao mesmo tempo, uma experiência espiritual e uma expressão ética.
No contexto semita, a mesa tinha um valor profundamente sagrado. Comer com alguém não era apenas um ato social, mas um sinal de aliança e lealdade. Partilhar o pão significava partilhar a vida. Por isso, trair alguém com quem se havia comido era considerado um dos gestos mais graves e desonrosos que existiam.
Quando Paulo recorda que Yeshua partiu o pão “na noite em que foi traído”, ele faz um contraste intencional: enquanto a traição rompe o vínculo da mesa, o amor de Yeshua o restaura. Assim, Paulo recorda à comunidade que toda refeição feita em nome do Messias deve refletir esse mesmo amor que permanece fiel mesmo diante da infidelidade humana.
Por fim, a recomendação para “esperar uns pelos outros” (v. 33) reforça a igualdade. Na mesa do Messias não há privilégios. Nela, cada um reconhece no outro um membro do mesmo corpo. Essa ideia se desdobra no capítulo seguinte, quando Paulo trata dos dons espirituais como expressões diversas de uma mesma vida compartilhada.
Em essência, Paulo fala de um amor que não se explica, se pratica. Ele não trata apenas de rituais ou costumes, mas da alma do Reino: uma comunhão que nasce da humildade e floresce no respeito mútuo. É nisso que consiste o verdadeiro legado de 1 Coríntios 11: a presença do ETERNO se manifesta entre os que vivem aquilo em que acreditam.
Seja iluminado!!!
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