Por Cleiton Gomes
O livro de Baruque, atribuído ao escriba do profeta Jeremias, apresenta uma descrição notável da manifestação da Palavra do ETERNO no mundo. Nele lemos: “Depois ela [a Torá] apareceu na Terra e viveu entre os homens. Ela é o livro dos mandamentos de D'us e a Torá que dura para sempre. Todos os que se apegam a ela viverão, e aqueles que a abandonarem, morrerão.” (Baruque 3:29-30). Essa declaração encontra eco imediato nas palavras do evangelista João, segundo o qual a Palavra se fez carne e passou a habitar entre os homens (João 1:1,14).
De modo harmônico, o apóstolo Paulo elabora sua teologia a partir da mesma premissa: o Messias é a própria Torá encarnada. Em Romanos 10, ele propõe uma releitura densa de Deuteronômio 30, afirmando que a justiça que advém da fé já estava prefigurada na própria Torá. O ponto central de sua exposição, “o fim da Torá é o Messias” (Romanos 10:4), tem sido frequentemente mal compreendido, sendo interpretado como uma alegação de abolição da lei.
No entanto, o termo grego empregado, télos (τέλος), carrega os sentidos de “propósito”, “meta” ou “intenção final” (Strong: G5056), e não necessariamente de abolição. Esse uso é corroborado em 1 Pedro 1:9, onde se afirma que “o fim da fé” é a salvação das almas, ou seja, seu objetivo e realização. Assim, o Messias não representa o término da Torá, mas sua finalidade última e sua plena concretização. Assim, a leitura correta do trecho bíblico é: “O Messias é o objetivo da Torá para justificar a todo aquele que crê.”
A profundidade dessa argumentação se torna ainda mais evidente quando observamos que o próprio Paulo, ao escrever Romanos 10:6-8, cita diretamente Deuteronômio 30:11-14. Nesse trecho do texto mosaico, os mandamentos são apresentados como acessíveis, não distantes nem inalcançáveis, mas próximos, “na boca e no coração, para os cumprires”.
Paulo se apropria dessa linguagem para demonstrar que a fé no Messias não constitui uma novidade desvinculada da tradição, mas é a expressão plena da obediência à Torá. Em vez de oposição entre fé e lei, o que se revela é uma continuidade harmônica. A justiça que procede da fé não substitui a Torá nem a contradiz, ela a ratifica, dá-lhe corpo e plenitude.
A relação entre a Torá, a sabedoria e o Messias encontra uma expressão eloquente no livro de Baruque, onde a sabedoria é descrita como aquela que “subiu ao céu” e “atravessou o mar” (Baruque 3:29-30). Trata-se de uma formulação que dialoga diretamente com a linguagem de Deuteronômio 30, evidenciando uma tradição literária comum na qual a sabedoria revelada não é inacessível, mas desce ao encontro do ser humano.
Paulo, ao evocar essa estrutura retórica, não apenas ressignifica o texto, mas insere Yeshua como a corporificação dessa sabedoria eterna que desce do alto e se manifesta na história. Essa identificação se confirma em 1 Coríntios 1:24, onde o Messias é apresentado como “o poder e a sabedoria do ETERNO”, ocupando o centro da economia salvífica.
Tal leitura adquire ainda mais solidez quando examinamos a redação aramaica de Romanos 10:4 na versão Peshitta. O termo utilizado, sāḵēh, carrega conotações como “totalidade”, “plenitude” ou “propósito final”, sentidos atestados na literatura talmúdica, como em Bava Batra 21a, e também reconhecidos por estudiosos como Marcus Jastrow. Longe de indicar uma ruptura com a Torá, esse vocábulo revela sua realização plena no Messias.
Nesse contexto, a tradução mais adequada seria: “O Messias é a totalidade da Torá para justiça de todo aquele que crê.” Com isso, Paulo não anuncia a abolição da Torá, mas sua culminação plena no Messias. Ele é aquele em quem os princípios da instrução divina ganham forma, direção e realização histórica. Trata-se, portanto, de uma teologia de incorporação e cumprimento, não de anulação.
Essa mesma compreensão é reforçada pela escolha lexical do evangelista Mateus ao empregar o verbo grego plēróō em Mateus 5:17, quando relata que Yeshua não veio “abolir” a Torá, mas “cumpri-la”. Longe de significar um simples encerramento, o termo plēróō carrega nuances semânticas como “preencher até a medida completa”, “levar à plenitude” ou “fazer transbordar”.
Portanto, ao declarar que veio “cumprir” a Torá, Yeshua não propõe sua extinção, mas sim sua realização mais profunda e elevada. Ele a ensinou com autoridade, viveu seus princípios com integridade e revelou sua dimensão espiritual mais plena. A Torá, sob sua vivência, não foi anulada, mas elevada à sua verdadeira estatura.
Essa mesma harmonia entre a lei e a fé se revela na estrutura sintática de Romanos 10:6. Ali, Paulo emprega a partícula grega dé (δέ), frequentemente traduzida como “mas”, o que pode sugerir uma relação de contraste entre a justiça que procede da lei e a justiça decorrente da fé. No entanto, essa partícula também admite um valor aditivo ou continuativo, podendo ser traduzida como “além disso”, “e ainda” ou “por outro lado”. À luz do contexto imediato, essa segunda interpretação se mostra mais coerente com o argumento paulino.
Em vez de fazer separação, Paulo está somando duas dimensões de uma mesma verdade: “Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da Torá viverá por ela. Além disso, a justiça da fé assim diz...”. Ou seja, não se trata de duas justiças em conflito, mas de um mesmo princípio enunciado sob perspectivas complementares.
Essa harmonia entre Torá e fé em Yeshua é ainda mais evidente quando observamos os atributos que a Escritura associa à Torá: ela é o Caminho, a Verdade, a Vida, a Luz e a Palavra (cf. Deuteronômio 30:15-16; Salmos 119:142, 105; Provérbios 6:23; Isaías 51:4). Todos esses títulos são aplicados a Yeshua nos escritos apostólicos (João 14:6; João 8:12; Apocalipse 19:13), reforçando a ideia de que Ele é a própria Torá viva, encarnada e atuante.
Em suma, os primeiros discípulos, conhecidos como netsarim, não viam em Yeshua uma ruptura com a Torá, mas sua plena personificação. Para eles, seguir o Messias era caminhar com a própria instrução divina, não como letra morta, mas como expressão viva da vontade do ETERNO. Ele é a Torá que desceu dos céus e habitou entre os homens, conforme já antecipara Baruque (3:38; 4:1).
Reconhecê-lo como o verdadeiro Messias é reconhecer que Ele é a culminação e revelação suprema da Torá. Negar essa conexão equivale a negar tanto a Torá quanto o próprio Messias. Quem caminha com Yeshua obedece à Torá, e quem cumpre a Torá está em sintonia com o Messias. A fé genuína não despreza a instrução do ETERNO, mas a encarna, porque a Palavra que se fez carne permanece viva naqueles que a escutam com entendimento e a praticam com fidelidade.
Seja iluminado!!!
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