Por Cleiton Gomes
A palavra ágape, do grego ἀγάπη, deriva do verbo ἀγαπάω (agapáō), cujo sentido fundamental é amar, estimar ou demonstrar consideração de modo intencional. Do ponto de vista etimológico, trata-se de um termo simples, sem sofisticação técnica em sua origem, utilizado no grego comum para expressar afeição ou apreço deliberado. Diferente do que muitas leituras modernas sugerem, ágape não nasce como conceito filosófico elaborado nem como categoria religiosa institucionalizada, tampouco como designação de uma festa pagã greco-romana.
No período arcaico, a literatura grega praticamente ignora o termo. Em Homero [1], tanto na Ilíada quanto na Odisseia, o campo semântico do amor é dominado por noções ligadas ao desejo, à honra, à lealdade e à amizade guerreira. O verbo ἀγαπάω (agapáō) aparece de forma esporádica e sem qualquer densidade conceitual, indicando satisfação, agrado ou estima, nunca um princípio ético ou ritual. Esse silêncio é significativo, pois demonstra que ágape não ocupava lugar estruturante no imaginário cultural grego mais antigo.
No período clássico, a situação se mantém. Em Platão [2], especialmente no Banquete [3], obra dedicada integralmente ao tema do amor, a reflexão filosófica gira quase exclusivamente em torno de eros. Platão descreve eros como força de tensão e desejo, marcada pela falta, que impulsiona a alma do sensível ao inteligível, do corpo à contemplação do belo em si. O fato de ágape não desempenhar qualquer papel relevante nesse diálogo é decisivo. Se o termo tivesse importância filosófica ou simbólica, seria natural encontrá-lo ali. Sua ausência confirma que ágape não era percebido como categoria teórica autônoma.
Em Aristóteles [4], a reflexão sobre o amor deixa de girar em torno do desejo e passa a se concentrar na vida ética e social. Na Ética a Nicômaco [5], ele dedica atenção especial à philia, termo que pode ser compreendido como amizade fundamentada na virtude, na reciprocidade e na convivência dentro da pólis [6]. Para Aristóteles, a amizade pode nascer da virtude, da utilidade ou do prazer, mas em todos os casos ela pressupõe troca, reconhecimento mútuo e certa igualdade entre as pessoas envolvidas. Já o termo ágape, quando aparece em seus escritos, não recebe desenvolvimento conceitual nem papel central. Isso indica que, para Aristóteles, o amor verdadeiramente relevante para a ética e para a organização da vida política é aquele que se constrói na relação mútua entre indivíduos, e não em um afeto unilateral ou abstrato.
Essa diferenciação ajuda a entender por que os termos não podem ser usados como sinônimos, nem misturados sem critério. No pensamento grego, eros descreve o amor marcado pelo desejo e pela falta, uma força que atrai, impulsiona e move o indivíduo, seja no plano físico, seja no intelectual. Philia, por outro lado, diz respeito à amizade e aos vínculos de convivência, sustentados pela reciprocidade e pela vida em comum, sendo essencial para a harmonia social e para a organização da pólis. Já ágape não ocupa esse mesmo espaço conceitual. Ele não se afirma como categoria filosófica estruturada nem como prática ritual reconhecida, funcionando antes como uma palavra descritiva, usada para indicar estima ou consideração, sem um desenvolvimento teórico próprio ou uma função institucional definida.
Essa constatação esclarece diretamente a discussão sobre um suposto caráter religioso do ágape. No mundo greco-romano existiam diversas formas de refeições coletivas, como os simpósios entre os gregos e os banquetes no contexto romano, além dos encontros organizados por associações religiosas conhecidas como collegia [7] e thiasoi [8]. As fontes antigas descrevem essas práticas com bastante precisão, sempre vinculando tais refeições a divindades específicas, a atos sacrificiais e a estruturas sociais bem definidas. No entanto, em meio a essa vasta documentação, o termo ágape jamais aparece como designação de uma festa pagã, de um rito oficial ou de uma celebração religiosa institucionalizada. Não há, portanto, qualquer evidência textual, arqueológica ou historiográfica que sustente a existência de uma chamada “festa do ágape” no paganismo greco-romano.
Do ponto de vista lexicográfico, essa leitura é confirmada por estudos clássicos da língua grega, os quais indicam que ágape e o verbo agapáō expressavam afeição, preferência ou estima, sem qualquer conotação técnica de caráter religioso. O termo descrevia uma atitude ou disposição pessoal, não um culto, rito ou celebração institucional. A inexistência de tratados, inscrições ou relatos antigos que vinculem o ágape a uma festividade pagã torna essa hipótese insustentável sob critérios acadêmicos minimamente rigorosos.
A mudança de sentido ocorre quando o termo passa a ser empregado em contextos helenísticos marcados pelo contato entre a língua grega e uma forma de pensar moldada pela tradição judaica. Nesse novo ambiente cultural, ágape deixa de funcionar apenas como uma expressão genérica de afeto e passa a assumir um conteúdo ético mais profundo, relacionado à escolha consciente, ao compromisso moral e à responsabilidade em relação ao outro. Essa transformação não nasce da filosofia grega clássica, mas de uma ressignificação semântica posterior, que desloca o termo de seu uso cotidiano para um campo ético específico.
À luz desses dados, a análise histórica conduz a uma conclusão inequívoca. Ágape não foi uma festa greco-romana, não constituiu um rito pagão e tampouco ocupou posição central no pensamento filosófico antigo. Eros e philia, ao contrário, foram amplamente debatidos, definidos e desenvolvidos pelos filósofos como categorias essenciais para compreender o amor, a ética e a vida social. O ágape teve um uso limitado até ser reinterpretado em outro horizonte cultural. Forçar sua origem para dentro do paganismo greco-romano não representa aprofundamento crítico, mas um claro anacronismo. Quando a história é lida com rigor, essa confusão se desfaz com uma simplicidade quase constrangedora.
A partir desse ponto, o texto pode avançar com naturalidade para o ambiente dos Escritos Nazarenos (vulgo “Novo Testamento”), onde o termo e a prática associada ao ágape aparecem inseridos em um contexto totalmente distinto do paganismo greco-romano. Quando se observa o debate de Paulo em I Coríntios, especialmente no capítulo 11, não se encontra qualquer indício de uma festa de origem pagã sendo absorvida ou ressignificada. O que está em jogo ali é um problema ético e comunitário, não ritual ou cultual no sentido pagão.
Paulo repreende os coríntios porque aquilo que deveria ser um encontro marcado pela comunhão, pelo cuidado mútuo e pela igualdade estava sendo distorcido. Alguns comiam em excesso, outros ficavam embriagados, enquanto os mais pobres eram humilhados. O apóstolo não critica a existência do encontro em si, nem o ato de comer juntos, mas a quebra da ética que deveria governar essa prática. Isso reforça que o ágape, no contexto das comunidades nazarenas, não era entendido como espaço de satisfação de desejos, luxo ou ostentação, mas como expressão concreta de responsabilidade social e fraternidade.
Esse padrão aparece em outras passagens dos Escritos Nazarenos, onde as refeições compartilhadas funcionam como extensão da vida comunitária. Comer juntos não era um ato neutro, mas carregado de significado social e moral. O encontro à mesa expressava pertencimento, solidariedade e compromisso com o outro. Trata-se de uma prática profundamente enraizada na cultura judaica do período, na qual a refeição familiar sempre foi espaço de ensino, memória e comunhão, e não de excessos ou libertinagem.
Nesse sentido, o uso do termo ágape nos escritos apostólicos reflete exatamente a ressignificação já mencionada. A palavra passa a expressar uma ética vivida, visível na forma como as pessoas se relacionam, compartilham recursos e se reconhecem como parte de um mesmo corpo social. Não há qualquer aproximação com eros, entendido como desejo ou impulso, nem com práticas festivas pagãs. O ágape, nesse contexto, se manifesta como cuidado ativo, disciplina comunitária e responsabilidade mútua.
Assim, a síntese dos dados conduz a uma conclusão clara. O ágape não nasce como festa pagã, não é herança do culto greco-romano e tampouco se confunde com expressões de desejo ou excesso. Ele se consolida como linguagem e prática de uma ética relacional específica, vivida na comunhão, na responsabilidade mútua e na ordem comunitária. Qualquer leitura que ignore esse percurso incorre em anacronismo e compromete a compreensão histórica do termo. Quando as fontes são respeitadas, o conceito se esclarece por si mesmo.
Notas de rodapé:
[1] Homero é tradicionalmente considerado o mais antigo poeta da Grécia antiga, geralmente datado entre os séculos VIII e VII a.C. A ele são atribuídas as epopeias Ilíada e Odisseia, obras fundacionais da literatura grega. Seus poemas refletem o imaginário do período arcaico, com forte ênfase em honra, heroísmo, destino e relações de lealdade, sendo uma fonte essencial para compreender a mentalidade grega anterior ao desenvolvimento da filosofia clássica.
[2] Platão foi um filósofo grego do século IV a.C., discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles. Sua obra é composta majoritariamente por diálogos filosóficos, nos quais discute temas como ética, política, conhecimento, alma e amor. Platão exerceu influência decisiva sobre toda a tradição filosófica ocidental, sendo uma das principais referências para o pensamento metafísico e moral do mundo antigo.
[3] O Banquete é um diálogo filosófico de Platão dedicado ao tema do amor. A obra apresenta uma série de discursos feitos durante um simpósio, isto é, um banquete aristocrático típico da Grécia antiga, no qual os participantes discutem a natureza de eros. O texto é central para compreender a concepção platônica do amor como desejo que conduz a alma da experiência sensível à contemplação do belo e do bem em si.
[4] Aristóteles foi um filósofo grego do século IV a.C., discípulo de Platão e tutor de Alexandre, o Grande. Diferente de seu mestre, Aristóteles desenvolveu um pensamento fortemente voltado à observação da realidade concreta, à lógica e à sistematização do conhecimento. Sua obra abrange áreas como ética, política, metafísica, biologia, retórica e poética, exercendo influência decisiva sobre a filosofia ocidental, a teologia medieval e o pensamento científico por séculos.
[5] Ética a Nicômaco é uma das principais obras éticas de Aristóteles, composta por dez livros e dedicada à reflexão sobre a vida boa e a felicidade, entendida como eudaimonia. Nela, o filósofo desenvolve a ética das virtudes, afirmando que o bem humano se alcança pelo exercício equilibrado das virtudes morais e intelectuais. A obra também apresenta uma análise detalhada da philia, a amizade, considerada elemento indispensável para a vida ética, social e política.
[6] A pólis era a cidade-Estado na Grécia antiga, constituindo não apenas um espaço urbano, mas uma comunidade política, social e cultural organizada. Ela reunia cidadãos livres que participavam ativamente da vida pública, das decisões políticas, das práticas religiosas e da defesa militar. Para os gregos, a pólis era o ambiente natural da vida humana plena, pois fora dela o indivíduo não alcançava sua realização ética e política. É nesse contexto que filósofos como Platão e Aristóteles pensaram temas como justiça, virtude, amizade e bem comum, entendendo que o ser humano se desenvolve plenamente apenas inserido na comunidade cívica.
[7] Os collegia eram associações voluntárias no mundo romano, formadas por indivíduos unidos por profissão, devoção religiosa ou interesses funerários. Funcionavam como espaços de sociabilidade e apoio mútuo, promovendo encontros regulares que frequentemente incluíam refeições coletivas. Essas associações possuíam estatutos próprios, hierarquias internas bem definidas e, em muitos casos, estavam ligadas ao culto de divindades específicas ou ao culto imperial. Fontes jurídicas e literárias romanas registram com clareza suas funções sociais e religiosas, sem jamais identificar o ágape como nome técnico de seus encontros ou rituais.
[8] Os thiasoi eram associações religiosas do mundo grego, normalmente dedicadas ao culto de uma divindade específica, como Dioniso, Deméter ou outras figuras do panteão helênico. Seus membros se reuniam para celebrações rituais, procissões, banquetes sagrados e práticas cultuais marcadas por forte identidade religiosa. Essas reuniões estavam claramente integradas ao sistema ritual pagão e seguiam padrões simbólicos próprios. Assim como no caso dos collegia, nenhuma fonte antiga descreve o ágape como termo técnico ou oficial associado aos thiasoi, o que reforça a inexistência de uma “festa do ágape” no paganismo grego.
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